É hora de se solidarizar e despertar o senso de comunidade
Tragédia e crise climática pedem atenção, reflexão e saberes urgentes para o tempo presente
Nos últimos dias, testemunhamos um despertar de solidariedade e empatia pelo Brasil diante de trágicas circunstâncias. Acompanhamos milhares de pessoas tendo que deixar suas casas, enfrentando o luto pela perda de entes queridos, passando pelas mais variadas adversidades, da perda de bens materiais até a perda de dignidade.
Os últimos acontecimentos certamente não têm sido fáceis de encarar. Mais de 85% das cidades do Rio Grande do Sul foram duramente atingidas pelas chuvas, segundo balanço da Defesa Civil. Os gaúchos precisam da nossa solidariedade e apoio, e é chegada a hora de voltarmos nossa atenção com sensibilidade para a crise climática que já enfrentamos e que pede por senso de comunidade e colaboração mútua.
"O objeto principal da política é criar a amizade entre membros da cidade" – Aristóteles
Em busca da “philia” cívica, um ideal aristotélico
Todo esse contexto da tragédia gaúcha me fez pensar num conceito aristotélico denominado “philia” cívica. Geralmente, esse termo é traduzido como amizade, mas vai muito além das relações individuais entre pessoas próximas e familiares. É um conceito que se estende à comunidade como um todo, ressaltando a necessidade de um comportamento cívico baseado no respeito mútuo e na colaboração para o bem comum.
A mobilização de diferentes partes do país, que têm se unido para ajudar as vítimas da crise climática no RS, demonstra a manifestação prática dessa “philia” cívica: indivíduos se solidarizam com seus semelhantes em momentos de dificuldade como esse, oferecendo ajuda e apoio material e emocional.
A crise climática paira sobre o mundo e, no Brasil, já vemos seus efeitos por toda parte: seca histórica no norte do país, calores extremos na região central, chuvas e enchentes com prejuízos incalculáveis no sul. A ameaça é real e pode afetar qualquer um de nós a qualquer momento — ignorar ou negar esse fato nos impede de agir para que o colapso seja evitado e faz com que importantes investimentos em prevenção não sejam feitos, como aconteceu no RS.
A urgência de uma ética que permita nos enxergar como comunidade
E é para esse senso de comunidade que a filosofia antiga, como a de Aristóteles, apontava. Trata-se de desenvolver um afeto coletivo e um comportamento cívico, tendo-os como elementos essenciais para a nossa sobrevivência e para a construção de uma sociedade harmoniosa e justa.
Quando nos engajamos em movimentos de solidariedade, ajudamos as pessoas em posições vulneráveis e colocamos em prática os valores fundamentais da “philia”, contribuindo para a construção de uma comunidade mais unida e resiliente — algo cada vez mais caro diante da ameaça climática.
O Instituto Colo de Mãe é uma das entidades que está arrecadando doações para as vítimas da chuva no Rio Grande do Sul para a qual eu doei. Você também pode colaborar:
“Quem salva uma só vida é como se tivesse salvado o mundo inteiro; quem destrói uma só vida é como se tivesse destruído o mundo inteiro” – Sentença do Talmude
Essa frase chama atenção por revelar a potência da ajuda que, muitas vezes, é vista como pequena. Os pequenos atos solidários são de extrema importância neste momento, e não devemos nos inibir com o tamanho da tragédia. Mais que isso, essa frase também revela um senso de igualdade que deve existir entre nós: toda vida é igualmente importante e fundamental para a comunidade.
Essa é uma sentença retirada do Talmude, coletânea de livros judeus que, assim como o conceito aristotélico de “philia”, reflete sobre questões éticas. A sentença é citada por Erich Fromm em sua obra "A arte de amar", que lemos no mês passado no Clube de Leitura da Lousa. Tal qual os filósofos antigos, outros pensadores ao longo da história se dedicaram a refletir sobre a importância da colaboração mútua, e Fromm faz parte disso.
Ao retomar esse trecho, o autor destaca a importância da igualdade e do respeito às diferenças individuais na construção de relacionamentos saudáveis, argumentando que a igualdade não implica apenas em reconhecer a unidade fundamental da humanidade, mas também valorizar a singularidade de cada indivíduo.
Por sua vez, Bauman, outro pensador alinhado a uma ideia de comportamento cívico, em sua obra "Amor Líquido", discute a complexidade das relações humanas e a necessidade de se repensar os padrões sociais em busca de uma convivência mais digna e respeitosa.
Bauman argumenta que o amor-próprio é essencial para a sobrevivência humana, mas esse amor só se torna completo quando é estendido ao próximo. Ainda que sejamos indivíduos dotados de nossas individualidades, isso só se completa no outro, quando nos estendemos ao outro. O amor se realiza quando nos entendemos como comunidade.
Pai da psicanálise, Freud também contribui fortemente para essa nossa reflexão. Em "O mal-estar na civilização", o autor critica a busca desenfreada por poder, sucesso e riqueza, destacando a desconexão entre esses objetivos e os verdadeiros valores da vida. Ele aponta para a diversidade da vida psíquica e ressalta que existem indivíduos cuja grandeza reside em qualidades e realizações que não são necessariamente valorizadas pela sociedade em geral.
Nesse sentido, a “philia” cívica pode ser vista, então, como uma contraposição à mentalidade egoísta, promovendo uma valorização dos laços sociais e do apoio mútuo. É uma saída ao individualismo contraprodutivo e dominante dos dias de hoje. É o caminho para a solidariedade comum.
“Mal-estar na civilização” é o livro no qual estamos nos aprofundando neste mês no Clube de Leitura Lousa. Por lá, já passamos por obras diversas, como as de Bauman e Fromm, sempre incentivando o pensar por si e a busca por saberes que vão além do conhecimento técnico e prático e que nos ensinam a viver, também, em prol do bem comum.
A Reforma Tributária a favor da mitigação da crise climática
O que a tragédia no Rio Grande do Sul e o contexto tributário brasileiro tem a ver entre si? Mais do que se imagina.
É preciso considerar que o Direito pode — e deve — desempenhar um papel fundamental na prevenção e no combate à crise climática, ajudando a moldar uma cultura da sustentabilidade que permeie todas as esferas da sociedade.
Um ponto de conexão entre a questão climática e a reforma tributária é o reconhecimento da importância da sustentabilidade ambiental na formulação de políticas públicas e na legislação tributária. Na nova legislação, vemos disposições que refletem diretamente essa preocupação, como é o caso dos artigos 43, 153 e 145.
O artigo 43, § 4º, inserido pela Emenda Constitucional nº 132/2023, estabelece que a concessão de incentivos regionais deve considerar critérios de sustentabilidade ambiental e redução das emissões de carbono. Isso significa que as políticas de incentivo econômico devem estar alinhadas com objetivos ambientais, incentivando práticas sustentáveis e a redução das emissões de carbono.
Por sua vez, o artigo 153, VIII, confere à União a competência para instituir impostos sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Essa medida visa desencorajar atividades econômicas que causem danos ao meio ambiente, como a poluição e a degradação dos recursos naturais.
Além disso, o artigo 145, § 3º, estabelece que o Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da defesa do meio ambiente. Isso implica que a tributação deve ser utilizada como uma ferramenta para promover práticas ambientalmente responsáveis e desencorajar atividades que causem danos ambientais.
A Reforma, já em andamento no Brasil, pode contribuir significativamente para o desenvolvimento de uma cultura da sustentabilidade, tanto no setor público quanto no privado. Ao incorporar princípios de proteção ambiental em suas políticas e legislações, o Direito pode ajudar a promover uma economia mais verde e a garantir a preservação dos recursos naturais para as futuras gerações, contribuindo para uma verdadeira relação de “philia” cívica entre nós.
Se quiser conhecer os artigos da Reforma mais de perto, com detalhes explicados por especialistas, e aprender a elaborar estratégias na área neste momento histórico do Direito brasileiro, conheça o curso Reforma Tributária da Lousa, que está com inscrições abertas:
Para encerrar nossa reflexão e me despedir, deixo uma frase de Freud, que espero que ressoe por aí, colaborando para o despertar da solidariedade:
“Devemos começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em consequência da frustração, formos incapazes de amar.” – Sigmund Freud